segunda-feira, 8 de setembro de 2008

MANIFESTO ECOLÓGICO PELO AQUERENCIAMENTO PLANETÁRIO

Trata-se de outro texto enviado pela jornalista Adriane Bertoglio Rodrigues, Assessora de Imprensa da Agapan/RS aagues@via-rs.net, para contribuir com nossa pesquisa sobre as orígens do moviemto ecológico em Porto Alegre. Veja também o blog da AGAPAN: agapan.blogspot.com .

MANIFESTO ECOLÓGICO PELO AQUERENCIAMENTO PLANETÁRIO
Temos na paisagem do Pampa riograndense um pássaro chamado quero-quero, que é considerado a sentinela do Pampa. O quero-quero, diferentemente de outras aves, faz os seus ninhos no chão, vivendo a maior parte do tempo em contato com a terra e apegado ao lugar onde vive. A este lugar em que o quero-quero, outros bichos e o próprio homem costumam ficar, no linguajar gaúcho nós chamamos de “querência”. Em português esta palavra se reporta ao verbo querer. A querência é um lugar que tem uma vontade, um querer originário, conforme a própria etimologia da palavra indica. Mas não é um querer isolado e separado do homem, dos animais e das plantas que ali vivem. O querer da querência requer o querer de tudo o que ali vive, de tudo o que pertence ao lugar, inclusive a paisagem. Ser apegado a um determinado lugar é ser aquerenciado. O processo de se apegar a um lugar se expressa com o verbo “aquerenciar”. Ser aquerenciado significa também estar de bem com a vida, estar na posse da plenitude do sentido da vida. Na sabedoria do homem do campo aqui do sul do Brasil, da Argentina e do Uruguai, do gaúcho, a felicidade é o próprio sentido de pertencer a um lugar. A querência é a intimidade com a natureza e com as coisas do local em que se vive. É ser parte das histórias das pessoas, dos animais e das plantas de um lugar. É ter a própria identidade pessoal, a própria história individual, inseparável de toda a teia destas histórias. É estar em casa no mundo. Por outro lado a pessoa que é infeliz, que não encontrou o seu lugar no mundo, que está de mal com a vida, é “desaquerenciada”. A pessoa desaquerenciada não tem paradeiro fixo, vive inquieta, sempre a procura de um outro lugar, insatisfeita, angustiada, no estado de carência, de falta. Na perspectiva da sabedoria gaúcha, o problema ecológico é a humanidade estar desaquerenciada da Mãe Terra, da Pachamama, de Gaia, a suprema morada do homem. O Fórum Social Mundial é a uma tentativa planetária de reaquerenciar a humanidade na Terra. Mas para que isso aconteça, cada ser humano deve ser alerta e vigilante como o quero-quero, deve exercer a sua condição de cidadania planetária defendendo a Terra e a Humanidade em cada local onde vive. Cada cidadão do mundo pode se inspirar no exemplo da sentinela do Pampa: ao pressentir a aproximação de um perigo, ele dá o alarme, começa a gritar o canto que deu origem ao seu nome e a fazer investidas contra o intruso através de vôos rasantes.

Para nós, ecologistas gaúchos,o quero-quero é o símbolo da soberania política e da cidadania planetária que o movimento ecológico gaúcho vem ajudando a instaurar no mundo em busca do equilíbrio e da sustentabilidade. Como o quero-quero, os ecologistas gaúchos através da ação de pioneiros como o Padre Balduíno Rambo, Luís Henrique Roessler, José Lutzenberger e outros, começaram a chamar a atenção do Brasil e do mundo para o perigo e a




inviabilidade ecológica da cultura ocidental. A hegemonia mundial do modelo civilizatório ocidental, antropocêntrico e eurocêntrico, é inseparável dos processos de dominação ecocidas e etnocidas do colonialismo e do neo-colonialismo promovidos pelos países do Hemisfério Norte.

Fundada em plena ditadura, sob a vigilância dos órgãos de informação e de repressão do regime militar no Brasil, a AGAPAN, Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural e seus ativistas correram riscos ao colocar em prática o lema inaugural do movimento ambientalista: “Pensar globalmente e agir localmente”. Como o coração da terra pulsando na batida do “bombo legüero” que atravessa as léguas da planura pampeana, fomos ouvidos. Numerosas entidades ambientalistas foram criadas, no Rio Grande do Sul, no Brasil e em todo o mundo. Ao longo das décadas descobrimos nas particularidades da cultura camponesa gaúcha as raízes ecológicas da nossa identidade local e regional como dimensões de universalidade. O movimento ecológico gaúcho inaugurou no Brasil uma concepção planetária de cidadania e de soberania constituídas pelo sentido de ser parte do mundo através do cuidado com a natureza e da participação na singularidade da vida em cada local. Para nós o quero-quero simboliza a vigilância ecológica como dimensão constitutiva do sentido da vida e dos fundamentos autopoiéticos da democracia e do poder político.

A cidadania planetária e a dimensão local são constitutivas do movimento ecológico como novo paradigma político. É por isso que a querência e o quero-quero são símbolos universais do horizonte para onde se dirige a caminhada do movimento ecológico em todas as latitudes. O movimento ecológico e o novo projeto de civilização que nós estamos criando, voltado para o equilíbrio, a sustentabilidade, a diversidade cultural e a biodiversidade, baseia-se no paradigma da complexidade e da interdependência. A ecologia abre um novo horizonte de solidariedade que supera e relativiza os valores, visões de mundo, as concepções de política e as ideologias geradas pela cultura ocidental. O paradigma da complexidade não é excludente. O movimento ecológico não é uma luta entre o bem e o mal. E a cultura ocidental é necessária mas, certamente, não suficiente para a superação desta crise planetária.

Nós, povos colonizados pela cultura européia, devemos renovar nossa auto-estima, respeitar e buscar inspiração nos conhecimentos, experiências e valores de outras culturas. Russel Means, índio lakota norte-americano, afirmou: “Cristãos, capitalistas, marxistas, todos eles tem sido revolucionários em suas próprias mentes. Mas nenhum deles propõe realmente a revolução. O que eles propõem mesmo é a continuação.” No caso,a continuação da supremacia do etnocentrismo europeu através da continuação do neocolonialismo no mundo. Um dos mecanismos culturais básicos do neocolonialismo é o eurocentrismo que mina a auto-estima, a autoconfiança e a autodeterminação dos indivíduos e dos povos,

colonizando as nossas mentes com um olhar que desaquerencia e nos coloca fora do mundo e do lugar em que estamos. Este não sentir-se em casa no mundo, esta busca de um ideal de felicidade desaquerenciado da Terra, principal produto de exportação cultural do eurocentrismo, faz com que nos sintamos inferiores, infelizes e dependentes. Significa a própria perda do sentido da vida na sua dimensão ecológica e política. O desaquerenciamento planetário imposto à força pelo neocolonialismo ocidental se alimenta da exclusão e da simplificação demonizante dos conflitos do mundo em nome de um futuro sem presente. Entretanto, o dito “subsesenvolvimento” tem as suas vantagens. Não podemos nos dar ao luxo de adotar o modelo de um projeto de civilização insustentável e inviável, ecocida e etnocida. Nós, povos do hemisfério sul, não temos nem necessidade e nem as condições de repetir os mesmos erros que culminam na sociedade de consumo como ideal de civilização. Efetivamente, com toda a nossa “miséria” e nossa “pobreza”, temos patrimônios naturais e culturais que nos colocam muito mais próximos da sustentabilidade ecológica e da plenitude do sentido da vida do que nossos irmãos do Norte. Na realidade,é o Hemisfério Norte que precisa do Hemisfério Sul e não o contrário .

O caminho para a sustentabilidade ecológica passa pela superação do neocolonialismo dos povos do Hemisfério Norte sobre o Sul e pela criação de uma ordem política internacional de fato solidária. Mas a superação desta condição exige a resignificação de todas as instituições sociais do mundo dito “civilizado” a luz do paradigma ecológico e democrático, bem como a efetivação da soberania dos Estados-Nação em todo o mundo. Hoje temos Estados sem legitimidade ou sem soberania atuando como enclaves nacionais a serviço do neocolonialismo. Para tanto é necessário a intensificação de Redes de Solidariedade que atuem nacionalmente contra egoísmo dos Estados-Nação a serviço das companhias transnacionais com suas imposições no campo tecnológico, econômico, político e cultural. A mobilização internacional contra o patenteamento dos seres vivos, a transgenia, a destruição das florestas tropicais, a diminuição da biodivesidade, as mudanças climáticas, a poluição dos oceanos e da estratosfera e todos os problemas ecológicos de âmbito planetário, bem como a recusa das intervenções nas soberanias nacionais por parte de instituições tais como o FMI , a OMC, a ALCA, o BANCO MUNDIAL entre outras, são, hoje, o campo de exercício da cidadania planetária em todas as querências.

A realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre é um acontecimento que evidencia a força e a legitimidade planetárias do poder local, mostrando a verdade do lema do movimento ecológico: “Pensar globalmente e agir localmente”. O FSM pode ser pensado como uma revoada de quero-queros que espalha pelo mundo o grito de alerta para o aquerenciamento da humanidade no seio da Mãe Terra.


Texto: AGAPAN, entidades que apóiam, CEA - Centro de Estudos Ambientais, Movimento Roessler de Defesa Ambiental, e Núcleo dos Ecojornalistas do Rio Grande do Sul - NEJRS. Fórum Social Mundial - Porto Alegre, janeiro de 2003.

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From: marciacs, 4 months ago

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